sábado, 6 de setembro de 2008

10.º Período DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Prof.a Jomara de Carvalho Ribeiro
Unidade I
INTRODUÇÃO AO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
1 DELIMITAÇÃO DE CONTEÚDO
A delimitação do conteúdo do Direito Internacional Privado (DIPr) envolve
duas premissas, quais sejam: 1) a multiplicidade dos direitos (ordenamentos
jurídicos) existentes; e 2) a ocorrência de situações que envolvam dois ou mais
direitos (ordenamentos jurídicos) diferentes.
Segundo David, “cada Estado possui, no nosso mundo, um direito que lhe é
próprio e muitas vezes diversos direitos são aplicados concorrentemente no interior
de um mesmo Estado”1. Ressalte-se que, atualmente, são cerca de 193 Estados
existentes, cada um com um sistema jurídico próprio.
Conforme pondera Dolinger:
A internacionalização da vida e das atividades humanas acarreta uma série de
fenômenos de natureza jurídica que devem ser enfrentados pelos Estados
isoladamente e pelas entidades regionais e internacionais no plano coletivo.2
Diante dessa diversidade de sistemas jurídicos e da inevitabilidade da
ocorrência de relações entre pessoas, entidades, organizações, subordinadas aos
sistemas jurídicos, pode-se afirmar que o Direito Internacional Privado busca
resolver as questões jurídicas que apresentam conexões com mais de um desses
sistemas. Atualmente, torna-se cada vez mais recorrente sua utilização, tendo em
1 DAVID, p. 19.
2 DOLINGER, p. 01.
2
vista o aumento das relações comerciais e pessoais entre indivíduos de países
diferentes. Portanto, as situações de conexão podem ocorrer, seja porque
(...) os envolvidos têm nacionalidade estrangeira, seja porque o domicílio ou a sede
de uma ou ambas as partes de um negócio jurídico está situado no exterior, ou,
ainda, porque um outro fato ocorreu fora do país, um bem está localizado ou um
direito foi adquirido alhures.3
Imagine-se a solução para o seguinte problema: uma empresa brasileira
celebra um contrato de compra e venda com uma empresa americana nos Estados
Unidos da América (EUA). No momento da execução do contrato surge um conflito
sobre seu cumprimento. Questiona-se: qual jurisdição seria competente para
conhecer a ação? Qual é o direito material a ser aplicado? Seria possível a arbitragem
internacional?
A análise dessas questões está no conteúdo da disciplina de Direito
Internacional Privado. A abordagem adotada será a anglo-saxônica, que procura
responder a três perguntas nucleares:
1) Em que local acionar? – as questões do direito processual civil internacional,
especialmente as relativas à competência internacional, também chamada de
conflito de jurisdição.
2) Qual a lei aplicável? – a utilização do método conflitual e suas regras, bem
como novas tendências da disciplina.
3) Como executar atos e decisões estrangeiras? – a cooperação interjurisdicional
entre os poderes judiciários de Estados diferentes, especialmente nas questões
relativas ao reconhecimento das decisões proferidas pela justiça estrangeira.4
2 DENOMINAÇÃO
Embora a denominação Direito Internacional Privado esteja consagrada,
permanecem severas críticas a respeito dessa expressão, pois a disciplina não é
internacional nem privada. Além do mais, há questionamentos se se trata, mesmo, de
Direito.
Segundo os críticos, a disciplina não é internacional porque a maioria de suas
regras depende do ordenamento jurídico de cada Estado. No Brasil, por exemplo, o
3 RECHSTEINER, p. 02.
4 ARAÚJO, p. 30.
3
juiz brasileiro irá buscar no Código de Processo Civil (CPC) e na Lei de Introdução ao
Código Civil (LICC), provavelmente, as normas para solucionar uma situação com
conexão internacional. A maioria das regras não está no plano supra-estatal, com
exceção, é claro, daquelas inseridas em tratados internacionais.
A disciplina não seria privada, porque, segundo alguns autores, sua
importância não se esgota no aspecto privativo do indivíduo. Ela é necessária para a
ordem pública estatal e envolve questões de organização judiciária e soberania,
inclusive.
Sobre ser ou não ser direito, bem, o fato é que o Direito Internacional Privado,
não resolve o mérito do problema. Ele, na verdade, indica qual o direito irá resolvêlo.
Por isso, suas normas são chamadas de indiretas ou indicativas. Daí a questão de
ser um sobredireito e, não, um direito autônomo.
Entretanto, a disciplina é autônoma, seja lá qual for sua denominação5. A
observância dos currículos de cursos de direito do mundo todo demonstra sua
importância e confirma que a expressão mais utilizada, apesar das críticas, ainda é
Direito Internacional Privado.
3 CONCEITO
Entre muitas definições, adota-se aquela proposta por Irineu Strenger:
Trata-se de um complexo de normas e princípios de regulação que, atuando nos
diversos ordenamentos legais ou convencionais, estabelece qual o direito aplicável
para resolver conflitos de leis ou sistemas, envolvendo relações jurídicas de
natureza privada ou pública, com referências internacionais ou interlocais.6
5 Nos Estados Unidos, p. ex., a disciplina é denominada Conflicts of Law (Conflitos de Lei).
6 STRENGER, p. 71.
4
4 OBJETO
O objeto do DIPr é a solução de conflitos de leis no espaço. O alcance dessa
solução, porém, perpassa por outros objetos como o conflito de jurisdição, a
cooperação interjurisdicional, entre outros.
5 O DESENVOLVIMENTO DO DIPr MODERNO
Segundo Dolinger, o DIPr, em seus primórdios, buscava a solução de conflitos
entre leis de cidades diferentes – mais precisamente, das cidades do norte da Itália
(Módena, Bolonha e outras) e das províncias francesas da Bretanha e da Normandia7.
Exemplificando, autor expõe esta questão: que lei se aplicaria a um contrato firmado
entre um cidadão de Bolonha e outro de Módena?
Isto, porque, por essa época, os Estados ainda não estavam formados da
maneira como estão hoje e as cidades européias apresentavam, cada qual, o seu
próprio direito8.
Dolinger transcreve um caso notório nos Estados Unidos que ilustra essa
questão, o caso Miliken v. Pratt9. O caso foi julgado, em 1895, pela Corte de
Massachusetts e envolveu Daniel e Sara Pratt. O casal vivia em Massachussetts, cuja
legislação considerava a mulher casada como civilmente incapaz. Sara Pratt firmou
uma garantia em favor de Daniel Pratt perante a Deering, Miliken & Cia., sediada no
estado de Maine, cujas leis tratavam a mulher casada como plenamente capaz.
Daniel Pratt ficou devendo e a sociedade acionou a fiadora, s.ra Sara Pratt, no
foro de Massachusetts pela soma de 560 dólares e doze centavos.
O tribunal de Massachusetts considerou que o contrato se realizara no estado
de Maine, pois quem assina um contrato em Massachusetts e o envia a outra parte
em outro estado, via mensageiro ou via correio, é como se tivesse ido àquele estado e
lá assinado o contrato.
7 DOLINGER, p. 19.
8 Ressalte-se que ainda hoje há situações análogas. O México, por exemplo, possui um Código Civil
para cada província. Nos Estados Unidos, os estados federados possuem autonomia para legislar,
acarretando conflitos entre leis no espaço, ainda que dentro do mesmo estado.
9 DOLINGER, p. 20–21.
5
Por isso, decidiu a corte que a hipótese era regida pela lei do estado de Maine,
julgando a ação procedente.
Embora o DIPr tenha se originado dentro dos próprios estados, ele acabou
tendo que se expandir à medida que os estados começaram a desenvolver-se e
relacionar-se uns com os outros.
Nos Estados Unidos, por força do modelo federativo por eles adotado, ainda
há casos de conflitos de normas entre um estado federado e outro. Assim, lá as
normas de Direito Internacional Privado são chamadas de normas de “Conflitos de
Leis” e são utilizadas, não apenas para conflitos entre nações diferentes (Estados
Unidos e Japão, por exemplo), mas, também, entre normas de estados diferentes
(Nova Iorque e Califórnia, por exemplo).
No Brasil não ocorre esse fenômeno, já que o nosso modelo federativo não
permite essa diversidade de leis cíveis, trabalhistas, penais e processuais, entre um
ente federativo e outro. A Constituição da República prevê a competência do
Congresso Nacional para legislar em âmbito federal sobre normas materiais e, ainda,
é a Constituição que atribui a competência para conhecer as causas às diversas
esferas do Poder Judiciário brasileiro.
No entanto, o Brasil enfrenta as questões relativas às conexões internacionais.
Isto é, quando uma relação jurídica está ligada apenas ao ordenamento jurídico
brasileiro (contrato de compra e venda, celebrado no Brasil, entre pessoas
domiciliadas no Brasil, a ser integralmente cumprido no Brasil, por exemplo), não há
que se preocupar com as normas de DIPr. Mas, quando uma relação jurídica está
ligada ao Brasil e a um ordenamento jurídico de outro país, sem o conhecimento e
aplicação das normas de DIPr, não é possível resolver plenamente as questões que
permeiam essa relação multiconectada.
Entre os doutrinadores que mais influenciaram o desenvolvimento do DIPr
estão: Joseph Story, dos Estados Unidos; Friederich Carl von Savigny, da Alemanha;
e Pasquale S. Mancini, da Itália. No Brasil, destacam-se: Teixeira de Freitas, Clóvis
Bevilacqua e Haroldo Valladão.
6
6 OS DIREITOS HUMANOS E O DIPr
A preocupação com os direitos humanos surgida com o fim da Segunda
Guerra Mundial traz uma mudança de paradigma para o DIPr10.
Não é mais possível, simplesmente, aplicar o método conflitual11 sem
considerar as reais necessidades do indivíduo. Assim, a tendência atual é a
flexibilização do método conflitual para permitir o respeito aos direitos humanos, em
especial ao princípio da dignidade humana, verdadeiro eixo axiológico do Direito
Constitucional.
7 A IMPORTÂNCIA DO CONHECIMENTO DAS NORMAS DE
DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
Até algumas décadas atrás, as situações de conexão internacional eram pouco
freqüentes no Brasil. As normas de DIPr eram utilizadas em relação aos imigrantes
que vieram para o país no final do século XIX e início do século XX, ou então, em
casos raros relacionados à classe alta da sociedade brasileira, já que apenas poucos
tinham condições de viajar a outros países.
A partir da década de 1980, a situação começou a mudar, não apenas no Brasil,
mas, no mundo todo. A globalização econômica intensificou as relações de pessoas
de países diferentes, facilitou a locomoção e a comunicação e, atualmente, o que se
observa é uma constante relação entre pessoas, sejam físicas ou jurídicas, submetidas
a ordenamentos jurídicos distintos. Surge daí a necessidade não apenas de se
conhecerem as normas de Direito Internacional Privado existentes, mas,
especialmente de aperfeiçoá-las e adequá-las à situação atual.
As compras realizadas pela internet, os casamentos realizados entre pessoas
com domicílios em países diferentes, os bens adquiridos e situados em países
diferentes, a abertura do mercado de bens, serviços e capitais a pessoas de países
10 Sobre essa mudança ver ARAÚJO, p. 07–30.
11 Método conflitual é o procedimento adotado para aplicação das normas de DIPr, que são chamadas
de normas indiretas, pois elas apenas indicam qual a lei material de qual país irá resolver a questão.
As normas indiretas ou indicativas não resolvem o mérito da questão, elas são conflituais no sentido
de resolver o conflito de leis que poderiam ser aplicadas para resolver o mérito. No Brasil, essas
normas indiretas ou indicativas encontram-se quase integralmente nos art.s 7.º e seguintes da Lei de
Introdução ao Código Civil (LICC).
7
diferentes, sem contar as viagens turísticas, acadêmicas, profissionais, entre outros
exemplos, implicam o desenvolvimento de normas que possam regular essas
situações, tendo em vista suas relações com mais de um ordenamento jurídico
interno.
Imagine-se uma situação recorrente: um brasileiro, domiciliado no Brasil,
compra um notebook no site da Amazon americana. Ele estaria submetido às leis do
consumidor dos Estados Unidos? Se houver uma controvérsia a respeito dessa
compra, ele teria que pleitear nos tribunais norte-americanos?
Imagine-se uma outra situação: uma brasileira casada com um francês, com
quem teve dois filhos, e residente na França. Após cinco anos de casamento, ela
retorna ao Brasil com os filhos e decide divorciar-se do marido francês. Ela poderá
entrar com o pedido de divórcio no Brasil? Terá que voltar à França para isso? E a
guarda dos filhos? E o recebimento de alimentos? E os bens adquiridos pelo casal que
estão no Brasil? E os bens que estão na França?
Esses são alguns exemplos de situações multiconectadas, ou com conexão a
mais de um ordenamento jurídico, que as normas de Direito Internacional Privado
buscam resolver.
Como essas situações crescem e se diversificam a cada dia, o acadêmico do
Direito, futuro profissional da área, precisa situar-se no âmbito das normas existentes
a fim de adequar-se às novas necessidades da sociedade, lócus do exercício de sua
profissão. Assim, o estudo da disciplina no curso de graduação em Direito é
imprescindível para a formação do acadêmico em conformidade com as
necessidades, não apenas mercadológicas, mas, também, sociais, do mundo atual.
8
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Nadia. Direito internacional privado. Teoria e prática brasileira. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003.
DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado. São Paulo: Saraiva,
2002.
STRENGER, Irineu. Direito internacional privado. São Paulo: Ltr, 2005.

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